• Mídia X Alimentação

     

    Quando o assunto é mídia versus saúde, o cigarro é o primeiro exemplo que vêm à cabeça. Antes símbolo de elegância e status, o produto hoje é considerado um dos maiores inimigos da saúde pública e alvo de restrições de uso, comercialização e até de publicidade. Mas e quando as discussões sobre a influência da mídia em nossos hábitos de consumo recaem sobre produtos que, diferentemente do tabaco, podem ser adquiridos e consumidos por qualquer pessoa, incluindo crianças e adolescentes, sem levantar polêmicas?

    É o caso do setor da alimentação, que começa a sofrer pressão da sociedade e do governo. Com verbas publicitárias na casa dos bilhões, a indústria alimentícia é uma das mais poderosas do mundo e não mede esforços para levar o consumidor a colocar seus produtos no carrinho do supermercado. O repertório midiático é amplo e nem sempre ético, incluindo vincular marcas à imagem de artistas, atletas ou personagens de desenho animado, propagar benefícios nutricionais não muito claros ou verdadeiros e realizar massivos anúncios, degustações e promoções. Mesmo quem compra na feira do bairro e procura manter uma dieta mais natural não está imune a tanta persuasão.

    O impacto disso na vida das pessoas aparece nas estatísticas. Pesquisas divulgadas pelo IBGE revelam que as famílias brasileiras estão consumindo mais bebidas e alimentos industrializados, como refrigerantes, biscoitos, carnes processadas e comida pronta. Como falamos no primeiro Especial+Sabor, estamos gradualmente substituindo nossa dieta tradicional – arroz, feijão, hortaliças – por produtos mais “práticos”, que supostamente atendem melhor às exigências “da vida moderna”.

    Não é difícil fazer uma relação entre esse fato e a influência da mídia nas nossas opções alimentares. A mudança no hábito dos brasileiros está ligada ao aumento do poder aquisitivo – quem costumava ter uma alimentação mais simples e caseira agora pode ceder aos desejos antes freados pelo orçamento doméstico minguado. As escolhas, não por acaso, recaem sobre produtos turbinados por nutrientes milagrosos ou que prometem momentos de prazer e felicidade.

    Esse padrão de consumo é consolidado há muito tempo nos Estados Unidos, onde a obesidade é tratada como problema de saúde pública. A má notícia é que o Brasil não está muito longe dos índices norte-americanos. A pesquisa do IBGE mostra também que o percentual de pessoas com excesso de peso e obesas vem aumentando continuamente em todas as regiões do país, em todas as faixas etárias e em todas as faixas de renda, dando ao fenômeno contornos de epidemia. E se o ritmo de crescimento do número de pessoas acima do peso se mantiver, em 10 anos elas serão 30% da população – mesmo percentual dos EUA.

    Vale por um bifinho?

    Quem não se lembra daquele comercial veiculado na década de 1980 que dizia que um iogurte valia “por um bifinho”? Já naquela época o anúncio provocou indignação entre nutricionistas por sugerir que o produto substituía uma refeição de verdade – e foi tirado do ar por isso. Hoje, um slogan como esse seria impensável, especialmente se o público-alvo são crianças, mas há casos em que a mensagem é mais sutil e acaba passando “despercebida” pelo Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), órgão responsável por fiscalizar e acionar os anunciantes sempre que algum abuso é identificado. Por isso, a entidade vem sendo cada vez mais questionada em seu papel de reguladora deste setor do mercado.

    Na tentativa de ocupar em parte essa lacuna, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) publicou em 2010 a Resolução nº 24, que determina que a publicidade de alimentos com alto teor de sódio, gorduras e açúcar seja acompanhada de alertas para possíveis riscos à saúde no caso de consumo excessivo. No entanto, a norma encontra-se suspensa por decisão da Justiça devido a ações movidas por entidades ligadas à indústria alimentícia. Segundo o artigo Publicidade de Alimentos no Brasil - Avanços e Desafios*, entre os argumentos que motivaram a suspensão estão o que diz que “todo alimento é saudável”, desde que consumido de forma equilibrada; e o que vê o consumo de alimentos não saudáveis como uma responsabilidade individual, não cabendo ao Estado medidas regulatórias quanto à veiculação de publicidade.

    Mas será que é assim mesmo? Os autores do artigo lembram que, nos países da União Europeia e nos Estados Unidos, as principais multinacionais da indústria de alimentos já reconhecem o equívoco de afirmar que não há alimentos não saudáveis. Lá, por exemplo, os fabricantes não fazem mais publicidade de determinados produtos voltados ao público infantil – um assunto que ainda está sendo discutido no Brasil. Além disso, a resolução da Anvisa não proíbe os anúncios de alimentos, apenas os obriga a vir acompanhados de advertências quanto aos prejuízos à saúde decorrentes do seu consumo em grandes quantidades.

    A questão da responsabilidade de cada indivíduo sobre suas escolhas também é rebatida. O comportamento humano, ainda que seja uma ação consciente, é profundamente influenciado pelo ambiente e, consequentemente, pela mídia. Basta voltar ao exemplo da indústria do tabaco. Anos atrás, quando se iniciaram os debates sobre os malefícios do cigarro, o posicionamento contrário às medidas regulatórias tinha razões semelhantes: se um adulto decide fumar, está ciente do risco que corre e o Estado não tem o direito de intervir. No entanto, eram os próprios fabricantes de cigarro os defensores deste “direito à liberdade individual”. Com o tempo, a comprovação de que o uso do tabaco era um vício causador de milhares de doenças fez cair por terra qualquer outra argumentação.

    Não sabemos ainda se os fabricantes brasileiros de alimentos com baixo valor nutricional e alto teor calórico serão pressionados a esse ponto para mudar sua conduta no que diz respeito à propaganda. Mas pelo menos nós, como cidadãos e consumidores, podemos estar atentos ao conteúdo das mensagens da mídia e procurar diferenciar o que é puro apelo de venda do que pode ser realmente benéfico para nossa saúde. E, claro, dizer não à tentação da comida industrializada, preferindo, na medida do possível, os produtos que a natureza nos oferece, sem embalagens mirabolantes ou campanhas milionárias na televisão.

    Referência:

    GOMES, Fábio; DE CASTRO, Inês Rugani R.; MONTEIRO, Carlos. Publicidade de Alimentos no Brasil - Avanços e Desafios. Ciência e Cultura, v.62, n.4, 2010. Disponível aqui.